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Acerca de

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Lata de Sardinha

      Quando criança, acompanhava minha mãe em visitas que ela fazia às casas mais simples que conheci, de chão batido, para conversar com os sertanejos da região sobre assuntos demorados. Era como entrar no oculto de uma roda d’água. Ali, ouvi dizer sobre a feitura da farinha de mandioca e do fubá, das plantações de milho e feijão, coisas que faziam as minhas refeições serem cada vez menos estrangeiras ao mundo que eu conhecia. Ouvi dizer também, dos sertanejos, sobre a música dos carros de boi e aprendi que para o carro cantar melhor é preciso azeitar o eixo das rodas.
     Não conheci, de fato, o estrangeiro, todo ele me soa como os cantos ininterruptos dos carros de boi, zumbem aquele agudo surdo que me faz inventar imagens quase sensoriais como as de um cego. O estrangeiro é também o que não vivi e busco inventar em mim. Assim, uma parte clara e outra escura, uma parcela de verdade e outra de invenção, basta uma lata de sardinha para azeitar o eixo da memória e revisitar o pedaço de chão da minha infância, hoje quase estrangeira.
     Num local reservado da casa, onde chamávamos de barracão, havia dois fogões à lenha, menores, onde nossa avó passava horas fazendo doces ou tingindo panos com sua larga colher de pau em grandes tachos de cobre. Com o pano na cabeça e suor retido nas dobras do tempo, mexia. Lá também viveu e morreu Lolita, uma cadela pequena, a mais adorada de nossa avó, que silenciosamente abocanhava o calcanhar de estranhos.

      Doces de leite, goiabadas cascão, bananadas, doces de figo que a gente misturava ao creme de leite, sugestão dela, da avó, todos eles saiam do chão de cinzas e do ar escaldado do barracão. O doce de leite era cortado em losango que minha mãe teve de comer toda uma travessa dessas por ter desobedecido e pegado um antes da hora, quando criança. E, talvez por isso, evitava os losangos.
       Biscoitos e bolos também eram especialidades da avó. A massa presa aos dedos, as mãos que amassavam até o ponto certo e a aliança de casamento ao lado da tigela. Os biscoitos enrolados, cada um em suas formas, eram, depois de prontos, afundados no café para melhor saborear, como se saboreássemos também os espaços daquela cozinha com as telhas empretecidas da fumaça do fogão à lenha, quase sempre aceso. A avó, sentada à cabeceira da mesa, partia com as mãos pequenos pedaços de seus biscoitos e, em silêncio, provava-os enquanto filhos e netos se debruçavam sobre a mesa para bem compartilhar com as conversas o momento do café da tarde. Não havia outro mundo além deste diverso que o sabor permitia. Partir os biscoitos com as mãos, quase num ato religioso, ao invés de leva-los direto à boca, era como repartir e compartilhar na memória a lembrança de quem ela reservaria uma parcela daqueles biscoitos, a outra parcela ela dividia entre a gente e suas lembranças. 
    O quarto de costura ficava ao lado da despensa onde se assavam os biscoitos e bolos, separados apenas por uma parede. Como o teto não era forrado, nossa avó costurava enquanto media o cheiro que vinha do forno. Dias de bolo, todos sabiam: o cheiro lembrava-nos da sua casca fina e miolo macio, do quanto eram bons acompanhados do leite com café.
     Nesses dias de bolo, toda espera tinha uma ocupação, pedíamos a avó para manejar um pouco a batedeira que tremia em nossas mãos, causando descontrole e o risco de não ter o bolo no café da tarde. Ela assumia a batedeira e, já de fôrmas untadas, pedia para que procurássemos latas de sardinha pelo quintal, lugar que guardava todo tipo de sorte. Enquanto não tivéssemos cada um a sua lata, não cessávamos as buscas. Uma vez encontradas, ela as lavava bem, esterilizava com álcool e amassava com um martelo as pontas cortantes que sobravam. Untadas, derramava a mistura do bolo em cada uma além da que já se assentava na fôrma maior. Ver o bolo crescer nas latinhas através do vidro escuro do forno era como receber um presente adiantado junto à expectativa da véspera. Era como dar à nossa infância a própria infância, nos reconhecendo em nossas terras, retirando de nós a casca de estrangeiros de nós mesmos, onde sabíamos o lugar da criança que provaria o bolo nas latas de sardinha e do adulto que retiraria fatias da fôrma maior. Deste modo, cada neto com sua lata onde havia uma mistura doce do claro e do escuro - bolo de duas cores - experimentava, num exercício camuflado do tempo, a parte clara primeiro, deixando o escuro (de chocolate) para as ordens do depois, para o futuro que tínhamos dentro da pequena lata e que era saboreado sem grandes receios. 

José Alberto Bahia

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